VÍTOR TOMÁS
Vítor Manuel Rodrigues Tomás nasceu a 27 de Agosto de 1961 em Castelo Viegas, uma aldeia (e ao tempo freguesia) do concelho de Coimbra.
As suas paixões navegam entre a leitura, a escrita e a pintura. O gosto pela leitura começou cedo. E depois de muito ler, um belo dia pensou que seria interessante transpor para o papel tantas e tantas coisas que lhe assomavam à cabeça. E foi assim que foram nascendo dezenas de páginas que se foram atulhando na gaveta. Porque a vida tem coisas estranhas, um dia destruiu a maior parte dessas folhas. Poucas escaparam.
Entretanto rumou ao concelho de Sintra. Aqui voltou a escrever. O resultado do que sobrou e da nova escrita foi dado à estampa no seu primeiro livro "Resquícios poéticos e alguma [pouca] prosa", nascido em 2012.
A partir daí foi escrevendo de forma regular tendo participado na coletânea "Palavras de Cristal" da Editora Modocromia. Em 2016 e depois de muitas vezes instado por várias pessoas decidiu avançar para a publicação do seu segundo livro, "Para Além do Silêncio da Noite". Neste momento tem material escolhido para avançar para um novo livro.
caminho
vive em nós um desejo infinito
de caminho sem razão nem destino
somente um cais de onde parto
enquanto o vento bate as asas.
para trás fica a casa
cercada de árvores anónimas,
plantas de cores poéticas
e o amor que foi amado...
agora somente o azul
de quadrante e astrolábio em punho.
Troia está para além de todos os poemas
e Ítaca é tão só um regresso distante.
faltam somente as asas...
voaria na procura de Penélope,
respirava-lhe o desígnio e deixava-me fascinar em carícias...
agora pausa!
porque é breve o riso e longa a espera.
e a tua nudez?
precisamos de incendiar a pele
e depois vou procurar o tempo em ti...
cheguei.
é preciso desenhar um cavalo na areia.
habitá-lo.
depois é a génese da dor
embriagada de promessas e cansaços...
quando regressar vou fazer-te o resumo dos dias
e vou querer falar-te de amor,
mas agora cavalgo as ondas
e escrevo poemas como quem diz coisas banais...
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ainda é dia .
nem sei se algum dia será noite .
é cedo e eu fico ...
se eu pudesse tocar-te
cantaria suspiros em surdina
e as mãos navegariam entre a forma
e o desejo curvilíneo de um poema feito corpo .
mas a escrita nada esquece .
prolonga .
anoiteço para além do horizonte
enquanto congelo horas repletas de vazio
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João que não era Semana
Sexta-feira. Final do dia. Talvez um dia como tantos outros.
João, que não era Semana, prepara-se para o primeiro café da noite.
O jantar - uma espécie de - já tinha acontecido.
A barriga era comandada pelo escurecer. Um pouco mais escuro e uma côdea
de broa, que resistia aos dias, e uma malga de um caldo estranho e aí estava a
barriga forrada para a noite.
Agora era assim. Antes da fábrica falir, João, que não era Semana, saía às 7
horas e a janta tinha outros componentes. Eram tempos em que a escuridão
não ditava regras.
- Um café acompanhado.
Paula já sabia, era um café com cheirinho daquela aguardente rija feita nos
alambiques que nasceram depois da falência da fábrica.
- João, olha que a conta já vai grande, não posso continuar a apontar no livro...
- Mas eu sempre paguei tudo!!!
- Eu sei que sim, mas agora a conta já vai alta, não posso continuar a fechar os
olhos, eu sou só a empregada...
- Desculpa, não quero arranjar-te problemas. Não tires o café.
E de olhar triste abandonou a sala.
Guiado pela luz pública tomou o caminho da fábrica que tinha falido.
Agora eram só escombros. E o olhar ficou ainda mais triste.
Entrou e subiu ao piso superior, o piso onde outrora estavam os patrões.
Tanto lixo...
Olhou em redor. A fábrica tinha-lhe roubado tanta coisa...
A saúde, o emprego, e agora até o café acompanhado.
Parou o pensamento. E num repente o corpo de João, que não era Semana,
misturou-se com os restos de uma parede que tinha desabado...
E a fábrica voltou a roubar ao João, que não era Semana, agora a única coisa
que ainda lhe restava: a vida.