CARLOS LAMAS DE OLIVEIRA

03-10-2020

Carlos Lamas de Oliveira

Nasci em 1951 em Angola na cidade de Nova Lisboa, atualmente Huambo, e muito criança fui para o Lobito, onde vivi até aos 19 anos, idade com que fui incorporado ao Exército em Janeiro de 1972, cumpri o serviço militar em Cabinda até Outubro de 1974.

Continuei em Angola, agora em Luanda, até aos finais de Outubro de 1975, momento em que emigrei para o Brasil, onde morei por 41 anos, entre as cidades do Rio de Janeiro, Paty do Alferes e de Petrópolis, e em Dezembro de 2016 mudei-me para Lisboa onde resido atualmente.

No Brasil tive alguma atividade literária com publicações em jornais de cidades do interior do Estado do Rio de Janeiro, como O Grito Serrano, de Paty do Alferes, Tribuna do Interior, de Vassouras, Panorama Regional, de Miguel Pereira e Olhos de Lince, de Paty do Alferes.

Em Portugal escrevi, em parceria com Luísa Ramos, o livro Pegadas e Trajetos, publicado em 2019 pela Editora Modocromia e faço regularmente publicações de poesia na minha página do Facebook.


 Por falar em olhares - Carlos Lamas de Oliveira


Joana sentia-se muito bem naquela tarde calma, quase pachorrenta. Não que houvesse um motivo especial para isso, mas talvez o sol radiante aliado a uma leve brisa e a temperatura amena fossem o bastante.

Sentou-se na esplanada e entregou-se ao doce prazer de admirar o elegante movimento dos veleiros que cruzavam as águas do Tejo. Para ela esse era um espetáculo tão relaxante como o de se fixar num aquário, no vai e vem dos peixes ou ficar a seguir as bolhas de ar que sobem em movimentos de dança. As velas brancas, que ela associava aos cisnes, também executam bailados, sempre diferentes e que nunca a cansavam e foi com os olhos postos nesse balé que pediu uma cerveja e um croquete.

Interessou-se também pelos presentes, rodou o seu olhar e foi-se fixando em cada par de olhos. A maioria deles era inexpressiva, sem brilho nem profundidade. Na verdade, nenhum par de olhos conseguiu captar a sua atenção por mais do que por um breve momento.

Há muito Joana tinha-se dedicado analisar as pessoas exclusivamente pelos olhos e     gradualmente foi-se aprofundando em minúcias para perceber com quem lidava. Com o tempo Joana tinha passado a conseguir ver muito mais profundamente a pessoa, sem se deixar enganar por olhares sedutores. Percebeu que no curto espaço que vai dos olhos às sobrancelhas, estava a pessoa despida de artifícios. Deixou de prestar atenção a cabelos, a sorrisos, a roupas, jóias, telemóveis, tudo isso fazia parte do enorme arsenal que era usado para enganar e ela não queria mais ser enganada. O uso das máscaras em ambientes fechados, tinha tornado a sua diversão mais fácil, pois os olhos eram quase e única parte visível dos rostos, o jogo tinha novos e interessantes contornos.

O que tinha começado como uma diversão pessoal, até íntima, pois não a dividia com ninguém,

era agora uma técnica quase infalível de ver as pessoas como realmente elas eram e a cada dia  ela se apaixonava mais pelas suas descobertas. Tudo tinha tido origem na leitura de um livro de Stefan Zweig, Vinte e Quatro Horas da Vida de Uma Mulher, em que uma das personagens avalia as pessoas pela atenta e minuciosa observação das suas mãos, ao ponto de saber como elas são, o que fazem e o que farão. Joana tentou fazer as avaliações das mãos mas nunca ficava satisfeita com o resultado, até que mergulhou no universo dos olhos, muito mais rico e profundo. 

E assim, naquela tarde, Joana avaliou rapidamente quem a cercava, a princípio viu apenas olhares vazios, eles apenas procuravam corpos bonitos enquanto fingiam que olhavam as águas, mas esses não a enganavam mais. 

Reparou então num olhar fixo em algo no rio, era um olhar de curiosidade e paz, um daqueles olhares onde se via o prazer de admirar algo. Joana procurou e percebeu que um grupo de barcos de instrução era o motivo da curiosidade daquele olhar. Os jovens, e não só eles, têm as primeiras aulas de vela num simpático "caixotinho", o Optimist, para que aprendam a dialogar com o vento e conheçam as manhas básicas da arte de velejar.

Aquele olhar, apesar de ter o lindo brilho da curiosidade quase infantil, estava instalado num par de olhos de homem, já com pequenas rugas. Estas rugas não se apresentavam muito profundamente vincadas, ela viu ali sinais de uma pessoa experiente. Viu ali também um caráter leve, que se conseguia fixar num assunto com aparente pouca importância, mas algo a fez baixar as expectativas, pois os olhos tinham uma misteriosa tonalidade cinza azulado, o que normalmente lhe trazia alguma incerteza quanto à firmeza de caráter. Eram belos mas perigosos.

Mas Joana não conseguia vê-los bem e não tinha como fixá-los frontalmente de modo discreto. 

Fixou-se então nas sobrancelhas e percebeu que já estavam a ficar um pouco brancas, ponto positivo, pois a imaturidade era um crime imperdoável . O conjunto era muito simpático e transmitia-lhe confiança.

Nada mais conseguia ver do rosto por causa da máscara facial que não tinha sido retirada, e Joana nem se interessava mais pelos detalhes que nariz, lábios, sorriso ou queixo lhe podiam dar pois não queria cair nas armadilhas da beleza e da sedução. O olhar lhe diria tudo sobre pessoa e era nisso que se concentrava.

Bebericou a sua cerveja e pegou no segundo croquete, estava delicioso e o espetáculo abriu-lhe o apetite. Um elegante veleiro cruzou lentamente à sua frente e ela entregou-se ao doce usufruir desse momento, a sua mão estática segurava o croquete enquanto a enorme vela branca percorria o cenário. Isso pode ter demorado dois minutos talvez, ela nem percebeu, era tanta beleza que o tempo não contava. Por fim voltou à realidade, suspirou profundamente e deu uma decidida mordida no pedaço de carne.

Foi quando ouviu um "olá" vindo de perto... Joana virou a cabeça na direção daquele olá e era "ele", o par de olhos encarava-a agora com um leve sorriso. Ele tinha trocado de lugar e estava agora sentado numa mesa ao lado da dela e embora houvesse uma distância obrigatória maior entre mesas, ele era seu vizinho e estava ali do lado! Apanhada de surpresa por aquela abordagem, Joana sentiu-se desconfortável e normalmente teria cortado o assunto imediatamente, mas a curiosidade falou mais alto. Com o semblante endurecido, retribuiu com um curto

-Olá...

Aqueles olhos, que ela agora via claramente que eram de um belo azul acinzentado, ou de um cinza azulado, estavam cravados nela mas de modo não acintoso.

-Olá... Peço desculpa, mas não resisti...

O sorriso continuou como moldura daquelas pálpebras e Joana continuou em silêncio, o olhar gelado. Tinha que ser assim...

-Há pouco eu percebi, ou acho que percebi, que você me observava e depois era você que estava com o olhar perdido nas águas....

Joana esboçou um leve sorriso, de alguma maneira tinha sido apanhada. A beleza daqueles

olhos incomodava-a, essa era a armadilha preferida dos conquistadores, dos playboys, dos sedutores baratos e ela abominava essas pessoas e as suas práticas. Sentia-se em desvantagem por estar sem máscara e ele com o rosto coberto. Além disso estava a comer, o croquete na mão o que não ajudava em nada.

-Eu não estava a observar ninguém, apenas me distraía com o vai e vem dos barcos...

Até ela achou que a sua frase tinha jeito de mentira e o par de olhos mostrou isso claramente com um longo e silencioso olhar em direção às águas do Tejo que corriam mansamente em direção ao mar. Ele, mais uma vez, rompeu o silêncio.

-Eu gosto de vir aqui e ver os barcos, as pessoas, lanchar alguma coisa.

Joana sentiu que o par de olhos comandava as ações, ele continuava a tomar as iniciativas da conversa e ela não queria isso, ou pegava agora as rédeas nas mãos ou cortaria o assunto.

-E há alguma coisa em especial que o atraia aqui? - Disse Joana que tinha agora o comando com ela. O par de olhos hesitou, deu de ombros.

-Ver o movimento, as pessoas... - Foi a resposta e Joana sentiu um pouco do gosto da decepção, esperava mais daquele belo par de olhos cinza azulados, que continuavam a sorrir.

Joana adiantou-se para continuar a manter o controle das ações.

-Eu adoro observar o movimento dos barcos à vela, tão silenciosos e elegantes..

-Sim, são lindos...

-Para velejar tem que haver um diálogo entre a vela, o vento e o marinheiro. O vento sopra mas é o marinheiro que tem de saber ajustar as velas para aproveitá-lo, é fascinante.

-É interessante sim...mas eu prefiro andar numa lancha com um motor potente, dá adrenalina - disse o par de olhos.

-Além disso navega-se num silêncio delicioso, ou quase silêncio, pois o casco é um tambor onde a água bate e depois os mastros rangem, o vento sopra surdo nas velas... é quase mágico!

-É - disse o par de olhos sem convicção. Mas a lancha tem mais emoção - acrescentou.

Joana achou que o par de olhos estava a sentir-se cercado, mas naquele momento ele foi salvo pela entrega do seu pedido, chegou uma tábua mista de queijos e carnes, presunto e chouriço e uma cerveja. Foi uma pausa providencial, ele ofereceu a Joana, que recusou. Num pequeno gesto de se sentar melhor, o par de olhos aproximou a cadeira um pouco mais da mesa dela e Joana não gostou nada do que sentiu.

-Você trabalha em quê? - Perguntou ele.

Joana gelou! É o fim, pensou ela, mas continuou serena.

-Eu trabalho ligada à Segurança Pública, mentiu ela. O par de olhos arregalou-se.

-Oh... Você é da Polícia?

- No meu trabalho quem faz perguntas sou eu...- Mentiu Joana que estava já muito divertida com o ar de espanto do par de olhos.

Ele não sabia bem o que fazer ou dizer, estava sem rumo. Depois de uma curta pausa, fez o convite.

-Eu gostei de conversar contigo... Posso tratar-te por tu?

-Podes sim.

-Podíamos combinar e sair para jantar uma noite destas...

Joana exultou, era o xeque mate!

- Podíamos sim, eu também gostei de conversar contigo.

O par de olhos, agora sem máscara, tinha o sorriso da vitória estampado.

-Dá-me o teu telefone?

-Eu não posso, o meu trabalho não permite... Joana estava a divertir-se imenso com as suas mentiras.

-Dá-me o teu número que e eu ligo-te de um outro aparelho, é o que posso fazer.

O par de olhos estava espantado com aquilo, mas não sabia o que fazer. Joana pediu a conta e preparou-se para sair.

-Tenho que ir...

-Está bem... Vais ligar para mim?

-Sim, vou, é claro, se eu disse que ligarei...

-Acredito, claro... E ligas-me quando?

-Ligo-te antes do fim de semana, está bem?

-Ótimo... Como é que te chamas?

-Patrícia. - Joana estava divertidíssima com aquela pequena vingança contra o par de olhos que tão bem a enganara no início. Teria depois que rever a sua capacidade de ler as pessoas pelo olhar.

-Eu sou...

Joana fez-lhe rapidamente um sinal de pare, e disse-lhe a sorrir:

-Não me digas nada agora, já te dei um nome...

-Já? E qual é? - Perguntou o belo par de olhos a sorrir com indisfarçável alegria.

-Blue eyes.... Tens uns lindos olhos, olhos de gato lindo...

O par de olhos sorriu quase numa gargalhada feliz.

-Ah, não... Verdade?

-Sim, verdade! Porque eu iria mentir? - Joana estava satisfeita, sentia que escapara de uma armadilha de galã.

Joana pagou e dirigiu-se à casa de banho, não queria que, ao sair pudesse ser acompanhada por aquele olhar. O seu caminhar foi acompanhado pelo par de olhos que a viu de pé e adorou o seu corpo, que achou espetacular.

-Está no papo! Que mulher maravilhosa! Ui! - Suspirou profundamente e sorriu, foi um suspiro de vencedor.

Joana esperou uns dois ou três minutos e espreitou para a esplanada e o par de olhos já estava focado noutro ponto qualquer, a preocupação dela era sair sem ser vista, e assim foi, dirigiu-se ao carro e saiu sem ser notada.

-Olhos de gato! Olhar gateado, cuidado menina Joana, sabes que não podes confiar nuns olhos desses! Raio de garota que não aprende! Será que o confinamento te fez mal? Desaprendeste ou quê? - Falava consigo mesma e estava com um enorme sorriso no rosto - O pior é que vou ter que ficar um bom tempo sem passar por aqui... Miau!

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