ANA GUERRA TORRES

05-10-2020

Nasceu a 12-09-1957 dentro de uma família aristocrática Alentejana, tradicional e abastada. Infância complicada, com carências afetivas e submetida a comportamentos traumatizastes, que lhe incutiram medos, terror, sofrendo de ataques de pânico, ansiedade e profunda gaguez, tornaram-na numa criança, insegura, tímida e introvertida. No seu mundo solitário, procurou na leitura e na escrita, uma forma de exteriorizar os seus pensamentos e sofrimentos mais profundos... Foi na adolescência, sozinha, que conseguiu ultrapassar e exorcizar os seus fantasmas e parte de todos os problemas psicológicos. Apaixonada, romântica, sonhadora, com
um sentido extremo de ajuda ao próximo e uma frustração constante por não conseguir salvar o mundo. Através da vida amorosa conseguiu compensar, de certa forma, a escassez dos afetos da infância e foi amada profundamente em todos os seus relacionamentos. Infeliz na maternidade, que tanto desejava, perdeu todos os filhos, na altura dos partos. Aos 42 anos, foi lhe diagnosticada, uma enfermidade, extremamente dolorosa e incapacitante. Hoje ainda continua a sua luta contra a Artrite Reumatóide, mas sempre com a esperança de poder continuar em frente e desfrutar do que acha verdadeiramente importante, para a existência do ser humano... Os afectos.




DE VÍRUS PARA VÍRUS


Era um rapaz de 25 anos, mas mais parecia uma criança pela enfermidade que padecia praticamente desde que nascera. Seu pai na procura de uma situação financeira melhor para a família, imigrara para a América, onde contraria um vírus, que provavelmente o havia contaminado e fora a causa do seu falecimento. O nome desse bicho, assim a mãe dizia para se referir ao vírus, era tão estranho que nem o conseguia pronunciar. A febre Chicungunha. Ela recebeu esse nome, pois Chicungunha significa "Aqueles que se dobram "no dialeto Maconde da Tanzânia. Uma doença muito incapacitante. O paciente tem dificuldade de movimentos de locomoção, por causa das articulações inflamadas e doloridas. Duma vida com grandes carências económicas, de viúva sozinha, que ficara ainda tão nova, tivera que deixar o filho na cama, onde da qual nunca mais havia saído, para poder dar o sustento para ambos. Ao início da doença, ainda os médicos tinham demonstrado alguma preocupação e curiosidade sobre o padecimento da criança, mas com o passar de alguns anos, logo esqueceram o caso da criança com o vírus de Chicungunha que ficara presa a uma cama. Sobreviver era a grande batalha que restara para aquela mãe que trabalhava todos os dias, de manhã à noite. As limpezas preenchiam os seus dias. As várias casas para as quais trabalhava como doméstica eram passados na grande batalha, onde o balde e a esfregona, o aspirador e o pano do pó́, eram as suas armas de combate. Os seus braços embora cansados, ainda resistiam a cuidar e limpar a sua pequena casa. Uma sala e um quarto num r/c de um prédio, que já vira melhores dias. Dormia no sofá́ da sala, deixando para o filho o único quarto, pois era nele que o seu garoto, como ela lhe chamava, quando se referia a ele, dormia numa cama não muito grande, onde sozinho passava todo o santo dia. Através de uma janela e de um ecrã̃ de televisão, as duas únicas formas do rapaz poder ter acesso a ver o que se passava pela imensidão do mundo. Esse mundo que os seus olhos na realidade nunca haviam observado pessoalmente. As suas únicas viagens foram sempre para consultas, hospitais, quando ainda a esperança em ter melhoras era uma possibilidade ténue, mas não completamente posta de parte. As duas janelas eram abertas pela manhã, antes da mãe sair, deixando a sopinha nuns termos, para ainda a comer quentinha e alguma fruta da época, que comprava quando o preço era mais acessível. O pão doce que todos os dias trazia para casa, com o maior desvelo, de um amor que pouco deixava passar, mas existia no seu coração, pois ele, o seu filho, era o centro da sua vida. Pão de Deus!...Aquele pão redondo, com coco no cimo, era como a confirmação da existência de Deus, uma bênção do amor do Criador. Mais do que um luxo, era um pequeno milagre que ela trazia para casa todos os dias. O vírus, apesar de ser o causador de todo aquele sofrimento, que lhe enfraquecera as articulações dos membros e dos músculos, já́ não era citado, não valia a pena, pois para além da medicina haviam sido abandonados pela sociedade, parentes, desde logo, apercebendo-se do grave problema que os assolara, rapidamente haviam saído das suas vidas. Zezinho, como a mãe o chamava, era um ser humano que poucos sabiam da sua existência, mas ele sabia da existência do mundo, apesar de o ver apenas através das janelas do seu quarto. Essas duas janelas, uma real outra virtual, era o veículo que lhe trazia toda a informação de tudo o que ele sabia. Zezinho, infelizmente nunca poderia se aperceber das suas reais capacidades intelectuais e cognitivas, pois a escola não tinha acontecido na sua infância e também perdera a vivência normal trazida pelos que tem uma vida dentro de uma sociedade humanista, mas que duma forma geral, pouco ou nada tem de humana. Apenas aprendera a ler, a escrever, pela grande vontade de o querer fazer. Os números, aprendera para saber contar e fazer contas simples, mas sempre certas, pois sabia a tabuada na ponta da língua. As imagens da janela do quarto, eram mais restritas e duma forma geral mais repetitivas. Quando chovia os guarda-chuvas passavam continuamente, escondendo o rosto das pessoas que os transportavam. O céu nessas alturas estava cinzento e os pingos da chuva pintalgavam as vidraças com gotículas transparentes. Porém, nos dias soalheiros os rostos vinham descobertos, com caras, algumas delas já́ suas conhecidas, pois deveriam fazer o seu percurso, de uma forma geral quase todos os dias e tendo como ponto de passagem a janela do Zezinho. Na outra janela, que se abria, quando acionava o comando da televisão, Zezinho via todas as notícias que transmitiam nos telejornais. Essa era a grande janela que se abria para o mundo, esse mundo que ele nunca desbravara em situação alguma. De tudo havia um pouco...O planeta, os continentes, os oceanos, os povos, os países, os políticos que governavam cada um deles, as escolas, as crianças, os professores, os médicos, os ladrões, os assassinos e todas as guerras que nunca conseguia entender, como muitas vezes pareciam nunca terem acabado, onde outras pareciam começar e acabar no próprio dia...As pessoas eram muito complicadas. Falavam muito, repetindo-se muitas vezes e contradizendo-se também, chegando ao ponto de ele não conseguir distinguir, às vezes, se seriam pessoas diferentes ou teriam mudado o seu rosto num espaço de tão poucos dias. Havia também os artistas, os atores e esses eram aqueles que ele gostava mais, pois cantavam, dançavam e diziam coisas por vezes muito bonitas e divertidas. Era deles que Zequinha tinha uma certa inveja, pois não sendo por maldade, era talvez a vida provavelmente que teria escolhido para si, se não fosse aquele bicho horrível que lhe tinha levado o seu pai e o deixara preso para sempre naquele quarto. Uma manhã, que deveria ser igual a tantas outras, as notícias foram abertas com uma palavra pouco vulgar para os seus ouvidos, "Pandemia" e num vírus que a provocara...Tinha um nome fácil de dizer e de fixar Covid19. Teria alguma coisa a ver consigo, com aquele bicho que a mãe agora raramente falava.... Ficou atento, nesse resto do dia e nos outros que se lhe seguiram. A notícia era sempre sobre esse vírus. Mesmo que mudasse de canal, lá estava ele, Covid 19!...A grande e terrível notícia, 24 horas, sobre 24 horas. Num dos dias, quando a mãe chegou perguntou-lhe o que ela sabia sobre aquele vírus? Ela, que quando chegava o cansaço era tanto, que pouco lhe apetecia falar e aparentemente, achava, que pouca importância esse assunto iria ter nas suas vidas, pois invariavelmente era isso que acontecia. No seu pequeno mundo, nada o fazia alterar.... Os dias eram exatamente iguais começando à mesma hora e terminando à mesma também, pontual como um relógio Suíço. Assim não valorizou a pergunta do seu filho. O sofá́ da sala, era naquele momento o ponto mais importante do final do seu dia. Zezinho ia assimilando tudo o que vinham a dizer sobre aquele vírus, que ele já́ começava a sentir como o grande acontecimento nos últimos anos da sua vida. Cada dia iam chegando mais informação...O contagioso de pessoa para pessoa. Que era completamente invisível e quando apanhado, em especial, os mais idosos tirava-lhes a vida. Toda a informação era unânime. As pessoas não deveriam sair de casa, a palavra confinamento, era a ordem para os próximos tempos. Rapidamente o mundo parecia ter parado. O vírus estava em todos os continentes, onde tudo e todos iam fechando as suas portas. Lojas, centros comerciais, ginásios, salões de beleza, feiras, escolas, igrejas e os hospitais esses não as poderiam fechar, pois era neles que poderiam tentar salvar quem fosse contaminado pela doença. As máscaras ao início, com alguma polémica, usar ou não usar, porem agora era absolutamente obrigatório. Zezinho estava perturbado. Como as pessoas iriam viver, pois até as famílias não se podiam visitar e abraçar. Ele bem sabia como era viver sem esses afetos, numa solidão que fazia parte intrínseca da sua existência, como comer, beber e até respirar. Com tanta informação que lhe ia chegando, Zezinho gostaria de poder fazer perguntas a qualquer pessoa, porém não era visitado por ninguém. Seria o mesmo vírus que ele tinha e agora tinham-lhe dado outro nome.... Sim, porque isso ele já vira acontecer em outras situações. Mudarem o nome das coisas..., Mas pensando bem, tudo era diferente. Ele não podia sair do seu quarto porque as pernas não andavam. A mãe saía todos os dias e nunca levara máscara e quando lhe vinha aconchegar a roupa, dava-lhe a bênção e um beijo na testa. Os dias iam passando e o rapaz via a mãe cada dia mais agitada e em certas alturas como que o pensamento estivesse ausente, do pequeno mundo de ambos. Embora continuasse a sair todas as manhãs, a sua roupa sofrera alterações. Um lenço passara a cobrir-lhe o nariz e a boca. Um vestido, que mais parecia uma bata, com uma toca que lhe cobria os cabelos negros, longos e fartos e umas socas de plástico, que deixava à entrada da porta, completavam a sua nova indumentária. Quando chegava, corria para a casa de banho e lavava as mãos freneticamente com sabão, apressava-se a trocar de roupa. Zezinho olhava a sua progenitora com orgulho. Não que o que visse fosse de grande beleza, até pelo contrário, as roupas davam um ar estranho, um pouco austero, mas que inspirava respeito, isso sim, inspirava... Celeste, assim era o seu nome, saia todos os dias com esta espécie de armadura para poder enfrentar o monstruoso vírus... Da janela do quarto agora o cenário era outro. Não eram os chapéus de chuva que tapavam o rosto das pessoas, mas as máscaras obrigatórias que variavam nos formatos, nos tons e até padrões, chegando ao ponto de as ver iguais ao tecido das roupas que traziam... Celeste, todos os dias ia chegando mais triste e abatida, com a preocupação estampada no rosto. Numa sexta-feira, chegou a casa bastante mais cedo. Trazia os olhos vermelhos, cheios de lágrimas. Zezinho, se pudesse levantar-se, teria corrido para ela, envolvendo num abraço e enxugaria as lágrimas que lhe corriam pelo rosto. A preocupação do filho recaiu na saúde da mãe...Teria ela sido contaminada pelo vírus? Porém a mãe tranquilizou-o. Não, não era esse o problema. Ela não sentia qualquer sintoma que pudesse levantar essa possibilidade. Mas já́ não tinha trabalho. Tinha sido dispensada de todas as casas para onde trabalhava. Casas que a tinham como empregada de limpeza, algumas há́ já́ bastantes anos. Como seria agora a sua vida e a do seu garoto. Onde iria buscar o dinheiro para pagar as contas e o sustento de ambos dali para a frente? Já́ havia acontecido perder uma patroa, mas logo arranjava outra, pois como mulher desembaraçada e honesta, não havia outra igual. Mas todas de uma só́ vez, era impensável, nunca poderia lhe ter passado pela cabeça. Do rosto quase desfigurado Zezinho olhou para as mãos vazias, que não traziam o Pão de Deus para lhe adoçar a boca. Queria dizer à sua mãe que isso não tinha importância, que preferia os seus beijos, abraços e carinhos, pois agora haveria mais tempo para isso poder acontecer. Poderia não voltar a ter esse sabor do doce na sua boca, mas no coração, que tão vazio estava pela ausência de gestos tão vulgares de carinho e atenção, que ele sabia que existiam, pois na televisão tudo passava, desde o abraço mais apaixonado e carinhoso, ao murro e tiro de metralhadora. Celeste não imaginava como dali para a frente iria ser as suas vidas.... Sentia uma dor no estômago e um vomito que lhe subia à garganta. A palavra morte vinha-lhe à cabeça como a única solução, a libertação para todos os problemas. Mas havia o seu garoto, aquele ser que tanto necessitava dela e era toda a sua vida. Não, a morte não era a solução.... Vencida pelo cansaço, acabou por adormecer.... Abençoado sono, que por alguns momentos iria fazer parar o pensamento de tanta angústia e agonia. Zezinho sentia que a mãe estava num estado, como nunca a tinha visto em nenhum dia das suas vidas...Ele não conseguia se aperceber da real dimensão, da terrível calamidade que tinha caído naquela casa, naquele r/c daquele prédio antigo, que mostrava já́ bem a passagem tempo. Do seu quarto ouvia a respiração da mãe mergulhada já́ no sono. Tinha tanta vontade de a poder ver adormecida, abraçá-la e cobri-la de beijos. Mas as suas pernas não o permitiam. A mãe já́ lhe havia posto a fralda da noite e agora só́ a voltaria a vê-la quando ela acordasse ou na primeira hora da manhã. Tinha vontade de chorar...Não era seu hábito faze-lo desde criança. Nunca havia sentido aquele sentimento de impotência tão forte.... Nunca sentira de facto o peso que poderia ser para aquela que o tinha gerado e protegido durante toda a sua existência, ano apôs ano, dia apôs dia. Celeste tinha se esquecido de lhe fechar o estore. Algo que jamais tinha acontecido. O fechar o estore e o beijo na testa, era o ritual de todas as noites, há́ 25 anos. Mas qual seria o ritual que iria entrar agora nas suas pobres vidas...Lá fora através da janela, onde o estore continuava aberto, via as pessoas a passarem apressadamente com as caras tapadas pelas máscaras.... Sentiu saudades dos tempos ainda recentes, onde os chapéus de chuva eram o motivo de não ver o rosto dos transeuntes que passavam pela sua janela. Fechou os olhos. Não, ele não queria ver aquela dança cruzada de rostos, sem rostos...O sono veio chegando de mansinho e com ele um sonho onde um chapéu de chuva subia, subia, levado pelo vento...Zezinho agarrado a ele sentia-se liberto, livre para ir onde quisesse...Ele não andava, ele estava a voar...Voar para longe daquele vírus, tão malvado que não era igual ao que ele contraira e o deixara sem poder andar. Aquele que a mãe chamava de bicho, que ele nem conseguia pronunciar o nome. Este era outro que tinha um nome tão fácil de dizer...Covid 19. Mais 6 números e seria a sua idade, pois ele era um rapaz 25 anos, embora aparentasse ser uma criança.

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