AMADEU MARIA RODRIGUES

05-10-2020

Amadeu Maria Rodrigues- nasceu no Funchal (1954) e é autor do conto policiário "Morte na universidade da terceira idade", 2017, da novela policial "Um homem Plácido", 2019, e do livro de contos curtos "Caramba!", 2019, editados pela Visconde de Seide. 



A MÁSCARA


Desliguei o telemóvel, guardei-o no bolso, e olhei em volta para ver se descortinava em que prateleira estava o leite de arroz que a Lú gosta.

Uma mulher idosa, com um casaco de malha creme e uma saia castanha, mexia freneticamente nas prateleiras com caixas de matinais do supermercado.

Olhei melhor, para alguma coisa serviu a operação que, por sorte, ainda fiz às cataratas mesmo antes de ser decretado o período de confinamento, e reconheci a minha vizinha, a Dona Isilda, que ao sentir alguém ao lado, levantou a cabeça e me encarou, reconhecendo-me também.

- Muum...faar...milh...? - fez ela por detrás da máscara de pano às florinhas azuis e rosa. Não há dúvida que, passados os primeiros tempos de estranheza as máscaras tornaram-se mais um adereço de moda. E esta foi feita pela própria Dona Isilda segundo me contou há dias: "A minha neta, que está a estudar para engenheira, é uma rapariga muito inteligente (!), mostrou-me no smarfone um filme com uma brasuca que ensinava a fazer máscaras. E eu, como sempre fui uma autêntica fada do lar, fiz logo três, duas pra mim e uma pra ela, sabe? Ficaram mesmo bonitas não ficaram?"

O pior é por vezes entender o que as pessoas dizem com todo aquele pano em frente da boca. Logo me havia de acontecer a mim que já ouço cada vez pior, pensei, embaraçado. - Diga, diga, Dona Isilda... - convidei-a a repetir o que dissera, para ver se entendia o que ela queria.

- Mauum stá a farr...milh...? Viu? - repetiu ela.

Fiz o ar meio comprometido de quando sinto que não estou a conseguir, não vou conseguir, faça o que fizer, entender o que me estão a dizer, maldita dureza de ouvido, mas, tentando ser simpático, sabe-se lá como! A Dona Isilda arregalou um pouco os olhos irritada pela minha incompreensão, penso, gaguejou alguma coisa por detrás da máscara, maldita máscara, e, em desespero de causa, como diria o meu pai, levou a mão direita à cara, num gesto sub-reptício e, com o indicador e o polegar, baixou um pouco o pano às florinhas.

- Estava a perguntar-le se viu donde está a farinha de milho? Eles aqui neste supermercado têm a mania de mudar as coisas de lugar, de vez em quando, e é que não dá jeito nenhum! Olhei à volta, tentando descortinar, logo eu, cegueta e que não trouxe os óculos de ver ao longe, onde poderiam estar os malditos pacotes de farinha de milho. Sorri por detrás da minha máscara esverdeada, esquecemo-nos que os outros não poderão ver a nossa boca, mas é a força dum hábito, e disse:

- Ó Dona Isilda, também não sei, mas aqui são os matinais. Talvez nas massas... Quer dizer... dizer disse, mas desta vez foi a minha vizinha que fez um gesto de interrogação com a cabeça, sacudindo os caracóis grisalhos, na verdade mais brancos que grisalhos, de poodle, ainda com a máscara abaixo da boca:

- O quê? O que é que disse, vizinho? Não percebi nada! Afinal sabe ou não adonde está a farinha de milho?!

Tossiquei para aclarar a voz, e, enchendo o peito de ar para poder falar mais alto e ultrapassar a barreira de pano esverdeado, disse:

- Diisse quee nããõ seeii. Só sei que aqui são os matiinaiis.

A velhota desta vez percebeu e, com ar descoroçoado, deu aos ombros e disse (não direi que rosnou, o que seria mais apropriado, por respeito com uma pessoa da idade dela) entredentes: - Estão sempre a mudar as coisas de lugar, carambas!

- Olhe, ali está uma funcionária, ela deve saber. - disse eu, apontando com ar triunfal a moça de bata azulada que, de máscara no queixo, ajeitava caixas de bolachas numa prateleira mais adiante. A Dona Isilda subiu a máscara com a ponta dos dois dedos, o indicador e o polegar, e afastou-se ligeira na direção da empregada que, ao senti-la aproximar-se, suspendeu o que fazia e olhou com simpatia aquela velhinha.

- Ora vejam lá, não querem lá ver!? - quase gritou a minha vizinha em tom de censura. E desta vez, dado o tom em que falou, ouviu-se bem o que dizia. - Então a menina não sabe que é obrigatório o uso de máscara adentro da loja? E afinal, anda-me para aqui com a máscara na queixada? Eu venho falar consigo e arrisco-me a ser infectada, ora essas! Até parece que não sabe que há uma pandemia, o Covi!

A rapariga gaguejou umas desculpas, puxou apressadamente a máscara para o nariz e, tentando parecer o mais amigável que lhe foi possível dada a situação, quis saber se a senhora desejava alguma coisa dela, de alguma ajuda.

Mas a minha vizinha Isilda, de peito inchado pela sua atitude corretora de quem pôs os pontos nos is, como ela costuma dizer, "há que pôr os pontos nos is!", olhou à volta com ar desdenhoso e respondeu:

- Veendo bem, não é preciso nada menina, mas já agooora, vou levar daqui uns pacotes de bolachas com chiculate. Gosto de as comer enquanto vejo o programa da manhã na televisão. E muito direita, encaminhando-se para uma das caixas com vários pacotes de bolachas na mão, ainda lhe ouvi, penso:

- É preciso as pessoas protegerem-se e protegerem os outros tamém, como dizem na televisão. Mas esta juventude é muito descuidada e põe os outros em risco de...de...em risco, prontos!


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